A Persistência da Memória - Salvador Dali
O AVESSO DAS HORAS
Teço o que sou
no vazio dos dias.
Sigo no avesso relógio ao c
o
n
t
r
á
r
i
o
.
O tempo tem seu tempo contado,
faz do sonho o inimaginável.
Há quem responde a completude do ser,
senão às horas, aos dias, ao tempo
e à angústia de viver?
O ser ressurge
do sêmen que à vida jorrou.
E o criador fez a criatura
viver infeliz abismos noturnos.
Sequer importa a vida lá fora,
acorda a morte prematura.
Parque Vaca Brava. Goiânia - Goiás
A POESIA
A poesia não sabia
ser possível sentir
o que a movia.
Fez-se o dia!
Foi-se o lençol
que inteira a cobria.
Tornou-se verdade.
Seu rastro agora
é só realidade.
Flor de cacto (Foto: Elizabeth Caldeira Brito)
AFETO
O universo
colocou-me às mãos
todo seu afeto.
Recolho.
Assim o preservo.
Até que o mito
se faça homem.
Tão perto,
que todo o afeto
do universo
tem agora
o seu destino.
Parque Ecológico. Goiânia - Goiás
BIPOLAR
O kamikaze
mergulha
em vôo errático,
no vale da morte.
E fica, enquanto
a sombra do que é
permanece.
E quando a vida
revés retorna,
emerge para
o outro pólo.
Então sorri,
da desgraça de si.
Assim vai vivendo
mar adentro,
procurando o caminho,
o equilíbrio, o centro.
DUALIDADE
Desenho-Yvan Avena
A poesia
no assombro da noite,
esfacelou-se.
Há a que se expõe
nas palavras, linhas
e metáforas
na distância das horas.
Há a que se esconde,
sob o pulso
que a(r)dia
sonho, prazer
e fantasia.
Uma anoitece,
sem forças em conter-se,
para a outra conseguir
subviver.
EM PELE
Remete o sentir à própria vida
afeito ao âmago amargo
da solidão compartilhada,
em intensas metades.
Pleno em sentimento.
Inteiro em saudades.
Remete o corpo à própria vida,
trêmulo e desajeitado,
cálido e alegre,
se guardava em pele.
Celebra amaravida,
que não mais será singular.
MELIPILLA
É tempo de plenitude,
completude e emoção.
Não acorde o sonho.
Pise leve as estrelas.
Silenciem as nuvens.
Se é possível
continuar sonhando...
Onde dormir para sempre?
Tela de Di Magalhães
EMPATIA
Vem aprender-me:
retire dos olhos
as vendas adâmicas.
Afaste as máscaras
que reflete em mim.
Coloca-te onde estou.
E vê,
com os olhos
de minha alma,
todo o universo.
Aprenderá assim,
de infinita forma,
o Eu de mim.
FOME
Nenhum alimento
sacia a fome
do amor ausente.
O ser se consome.
Resta um resto
de saudade.
Leveza em cactos (foto de ECB)
ENTREGA
Êxtases partilhados
com tua ausência.
A dependência
do não ser,
querendo teu ser.
As noites buscam o sol
que chega lentamente.
Os olhos ao léu
vêem noites infindas.
E no breve amanhecer
tudo se torna claro,
senão o sentimento.
Vem o recomeço:
o sedento e gostoso
tormento
de se adolescer,
da espera virtual,
do prazer à distância
e do calor infernal
de querer ser teu ser.
Não. Não consegue!
Entrega-se
ao vulto que vê
sem que jamais
tenha visto.
Monumento em Goiânia - Goiás
FINADOS
Parabéns a você
que morreu para mim.
E como matar o que está na pele,
na história, na retina e na memória?
Volte!
Antes que eu morra
de amor por você.
NADA
Não mais fim de semana,
nem lindo amanhecer.
Não mais águas de março,
só estar com você.
Não mais pôr-do-sol,
nem chuva na plantação.
Não mais eclipse lunar,
nem luar do sertão.
Não mais brisa da manhã,
nem leve sopro do vento.
Não mais olhar as estrelas,
nem o melhor pensamento.
Não quer mansidão das águas,
nem o silêncio da mata.
Só saciar a fome,
na solidão que desata.
Tela: Di Magalhães
NOSTALGIA
Saudade,
já não cabe em si.
Evola nos poros.
No sombrio olhar
se deixa ficar.
No soluço da alma
plangia ausência.
Não disfarça a efígie:
fantasma de um
que o outro não tem.
Saudade,
camufla alegria,
contagia tristeza,
suprime euforia.
De quem outrora,
por não ser assim
era tão infeliz!
ONTEM
Olvidar um ontem
apagar à vida o dia
que se quedou na memória,
na veia e na trajetória.
No entristecer do sol
ao ver a noite invadir seu dia.
E o dia que finda
sem o anoitecer:
perdura na dor,
angustia e solidão,
companheiras dos ontens
e dos amanhãs
que virão.
Foto ECB
POSSESSÃO
Quisera apagar de ti
a luz e o sol
que irradias,
para retirar
as sombras
que te acompanham.
Foto ECB
PALAVRA
Imersa à infância
traduz o Outro ser.
O sentido é imposto:
significa o que o Outro
indivíduo quer dizer.
Palavra de então,
que ainda não se crê:
transporta o que é de si
em signo do além,
congela a realidade,
reforça preconceitos.
Som que silencia
a história que contém.
Palavra que liberta
as sementes da fala.
Quando mais germina,
quanto mais se cala.
Desenho Yvan Avena
PLATÔNICO
Beija os cabelos
como se fosse irmã,
a face, se fosse filha,
a pele, se fosse mãe.
Beijos que não queria.
O desejado:
de ser amado,
nos lábios molhados
no revelar da paixão.
Foto ECB
STRIP-TEASE
Fiz strip-tease dos verbos
que me vestiam,
para cobrir-me
em tatuagens,
das incríveis
viagens de tuas
mãos.
RETIRANTE
Ao escritor Aidenor Aires
A cidade vazia
metrópole fria,
soluça a ausência
do menino amado.
Debandando a fome,
no sacolejo dos dias,
buscou outro rumo.
Buscou outro estado.
Na cidade aporta.
Medrando em labuta,
em rol de palavras,
é lesto adotado.
E àquela que um dia,
foi berço esquecido,
agora em alforria,
retorna em vitória.
A cidade vazia
especa, aguarda
o retorno de seu
menino de glória.
Bosque dos Buritis. Goiânia- Goiás
SER E ESTAR
Estou
entre o Meia-Ponte
e o ser,
que à mão ampara
o que não se alcança.
Estou
entre o nume
e a mente.
E o gesto que se quer
só se compreende.
Estou
entre o platônico
e o lascivo.
E a libido que une
não nos liberta.
Goiânia-Goiás
TENTATIVA
Tento juntar pedaços
da metade que restou,
vou tateando a pele
para matar a saudade
da saudade que ficou.
Tentativa em vão!
A pele percebe,
que nesses braços
não estão tuas mãos.
Foto ECB
EXPERIÊNCIA
O canto de um ser plural,
guardará indelével,
os amanhãs que chegam,
à sombra daqueles
estagnados,
no avesso das horas.
Cravada na geografia dos rios
da correnteza do sangue,
nos fios de memória
que guardam o lume
das claras manhãs.
A vida celebra.
E ao inexistir
a cal desses dias,
haverá de estar
para além do fim,
a experiência.
TÍMIDA OBSSESSÃO
Quero ser
bola que te embala o ânimo,
o mel que te adoça o beijo,
a língua que te faz a fala,
e o seu som, que encanta almas.
Quero ser
a luz que de ti emana,
o vento que te roça e fere,
o ar que em ti entranha,
o suor que te aflora à pele.
Quero ser
o lençol que te embala o sono,
o sonho que povoa o espírito,
a imagem que guarda a retina,
o chão que te pisa os pés.
Quero ser
o rio que te banha o corpo,
a palha que te guarda o sol,
a água que te bebe a sede,
e a sombra que te segue sempre.
Procura-se
nas horas lentas,
consumidas em ilusões
e esperanças de única via.
Procura-se
nos nebulosos dias,
o brilho do olhar,
que no assalto do tempo,
vestiu-se baços
e opacas neblinas.
Procura-se
no campo invisível
do silente desejo,
o instante de sonho,
que só o tempo ensina.
E vislumbrando manhãs
de viagens infindas,
em horas amargas
e inválidos dias,
do tempo que urde
a singular figura.
E constrói para sempre
uma infeliz criatura.
SÓ
Da-me a mordaça
se necessita palavras.
Ata-me os passos
e descaminho em veredas.
Da-me a solidão
e expõe-me à vida.
Ata-me o gesto
ao jogar-me ao mar.
È assim que reside
um ser singular.
A SE CONSUMIR
A noite
não finda,
sagra a ausência
que povoa a mente.
A espera,
se consome em sonho,
no afã do encontro
inteira se oferta.
O tempo
da segura incerteza,
no piscar de olhos,
uma chama ilumina.
Não para si,
na vela acesa.
Parque Zoológico. Goiânia - Goiás
INSTANTE
Impedir
que o momento
passe em relâmpago.
Segurar
o instante
que reflete no olhar
a imagem almejada.
Te c e r
palavras que traduzem
o que o corpo em vão,
tenta emudecer.
Ocultar
os desvelados
segredos, inscritos
em cada poro
e no pulso acelerado
da emoção comedida.
Traduzir
ocultas idéias
e metáforas.
Desvendar
o que está
à frente dos olhos,
ao alcance das mãos.
CARNAVAL
Na poeira de só
que emana dos pés,
o eterno encanto
desfaz-se em instantes.
No disfarce das horas,
queda a fantasia.
No efêmero tempo,
quarta-feira em vida,
se veste de cinzas.
Resta o que seria.
Os textos anteriores são do livro
O avesso das horas & outros. El reverso de las horas y otros.
L'envers des heures & autres - edição trilingue.
Tradução para o espanhol de Perpétua Flores e
para o francês de Yvan Avena, responsável pelas ilustrações dos poemas